sexta-feira, 13 de abril de 2018

O MECANISMO DE DISTORÇÃO DA VERDADE NO BRASIL


A série “O mecanismo”, de José Padilha, que está bombando na Netflix, é um perfeito exemplo de como se distorce sistematicamente a verdade sobre o Brasil, tanto na academia quanto na arte, operando-se uma perfeita divisão do trabalho. Vou reconstruir um breve histórico deste conhecido cineasta, para que possamos entender o que esta série realmente representa.
Desde o seu documentário “Ônibus 174” (2002), sobre o conhecido episódio envolvendo o garoto de rua protagonista da tragédia, que Padilha não me convence. Quem quiser ter acesso a uma análise realmente crítica deste episódio pode assistir ao filme “Última parada 174” (2008), de Bruno Barreto que, apesar de ser uma ficção, e não um documentário, como fez Padilha, tematiza de fato o que aconteceu na história de vida do menino Sandro. Primeira lição a se aprender: nem sempre um documentário é crítico.
Neste belíssimo filme, Bruno Barreto deixa claro, com fineza sociológica rara, as razões que levaram o menino Sandro a se tornar um adulto tolo e protagonizar a tragédia do referido ônibus. Não recontarei a história, pois é bem conhecida. A análise do filme, baseado em fatos reais, mostra com clareza a história de vida do menino: sua mãe, uma batalhadora dona de um bar na comunidade em que moravam, é assassinada brutalmente durante um assalto em sua presença. O menino começa a vagar, não pára na casa de nenhum parente e, sem destino, enlouquece e vai morar nas ruas do Rio de Janeiro. Paralelamente, o filme mostra a vida de um outro menino Sandro, da mesma idade que, criado por um traficante, desenvolve todas as disposições e a inteligência necessária para o crime. Contrário a ele, o Sandro do ônibus se torna um garoto de rua que é essencialmente um tolo. Esta é a moral da história: um garoto de rua não tem metade da sagacidade de um traficante, e o seu destino é ficar vagando e cometendo pequenos delitos no centro da cidade. Ou seja: o garoto de rua é um exemplo perfeito do que o abandono social pode causar a uma pessoa. Quando esta pessoa comete algum delito que afeta a “boa sociedade”, logo ficamos apavorados.
Moral da história: é assim que se usa a arte para se tematizar criticamente as razões dos problemas sociais. É preciso que se mostre claramente, sem ambiguidades e floreios, a origem real dos problemas, como faz o filme. É preciso que se tenha uma didática clara e direta para o público. Esta certamente não é a marca de Padilha. Já no primeiro “Tropa de Elite”, baseado em livro de relatos escrito por Luiz Eduardo Soares e parceiros, ele deixa ainda mais claro a que veio. A trama do filme é simples: apenas uma tropa muito bem treinada para uma guerra, com razões morais que motivam seus membros a darem sua vida pela causa, pode enfrentar o crime no Brasil. A velha tese acadêmica de que a desigualdade no Brasil é uma questão de polícia não podia ser melhor requentada e apresentada ao público como distração.
Em resumo, a questão central do filme, reforçada por sua estética, é que uma tropa de homens bons e honestos vai enfrentar o crime para salvar a boa sociedade. O sentimento mobilizado pela estética do filme é a vontade de ver o crime exterminado a qualquer custo. Por isso não é crítico. A arte tem o poder de mobilizar imediatamente os corações das pessoas. Por isso, deve ir direto ao ponto. Em nenhum momento o filme questiona o fato central de nossa desigualdade, que tem a ver diretamente com a violência no Brasil: o fato de que homens moralmente desqualificados e excluídos de outras possibilidades de trabalho distinto vão encontrar no batalhão sua única chance de receber algum prestígio e status. Para tanto, o preço é matar muitas vezes um primo ou irmão, do outro lado do front da batalha (há relatos verídicos sobre isso), para com isso defender a classe média e a elite da violência mais imediata do cotidiano.
Novamente, fica a sugestão: para quem quiser ver um filme realmente crítico sobre o drama da guerra e de como ela destrói a alma dos envolvidos, basta ver o belíssimo “Nascido para matar” de Stanley Kubrik. Este sim, tematiza como o treinamento indigno, apenas caricaturado no Tropa de elite que “mostra”, mas não “analisa”, mobiliza os sentimentos e valores dos envolvidos. No filme, um dos soldados, que não tinha preparo físico e emocional para o treinamento, como muitos não tem, acaba se apaixonando pela própria arma, e no final aniquila seu treinador, que era seu algoz.
No Tropa de Elite 2, nosso querido cineasta vai ainda mais longe. Como o próprio sub-título do filme sugere, “O inimigo agora é outro”. O já consagrado herói nacional, Capitão Nascimento, agora “cai para cima” e vai trabalhar na inteligência do combate ao crime. Descobre logo de cara o “sistema”. Moral da história: a polícia deve combater a política. Uma análise que fiz na época sobre o Tropa 2 pode ser lida aqui: http://eduem.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/viewFile/11629/6704.
Mais uma vez, o filme tem uma onda crítica. Aqui não podemos confundir o uso dos fatos com a capacidade crítica da arte, pois é exatamente o que ocorre agora no “Mecanismo”. Não por acaso, o Tropa 2 é lançado em pleno início de segundo turno das eleições para presidência, em 2010, na qual Dilma venceu Serra. Um dado ingênuo: a última cena do Tropa 2 é uma imagem sobrevoando o palácio do planalto. O tema do filme, adivinhem: combate a corrupção, que neste caso é só no Estado.
Por fim, temos agora o “Tropa de Elite 3”, pois não se trata de outra coisa esta série “O Mecanismo”. O inimigo continua o mesmo: a política em si e todos os políticos, pois todos são corruptos. Este é o discurso adotado pelo diretor. Não por acaso, a série se atualiza em alguns aspectos: agora o problema do Brasil é mais complexo e apenas a casta jurídica, isenta, pode enfrentar a corrupção, “nosso câncer”, como é enfatizado na série. A estética é a mesma: o combate ao crime organizado, de colarinho branco. A polícia, mais inteligente, preparada, séria e isenta: a federal. Temos alguma esperança: algumas pessoas de bem ainda acreditam na guerra contra os criminosos. Falta apenas falar de um detalhe nesta história toda: a política corrupta é apenas a ponta do iceberg de um “sistema” um pouquinho maior...Só não posso garantir ao leitor que uma série realmente crítica sobre ele passará na Netflix.